“Contém sulfitos”
Você conhece o termo. Sim, esse mesmo. Estrategicamente posicionado no contra-rótulo da sua garrafa de vinho preferida. E não é preciso um olhar mais atento para confirmar: ele está em todas! Do vinho nacional ao importado, sem distinção de idioma ou nível de qualidade, mas sempre gerando muita polêmica por onde passa... Sulfitos, perdoem-me a intimidade! Melhor seria apresentá-lo como Dióxido de Enxofre (SO2). E então? Já associou o nome à “pessoa”? De um ponto de vista muito simplificado, é bem possível que a maioria de nós o considere um mero conservante, tão necessário quanto inócuo. Mas talvez você consiga enxergar além, e tenha um discurso inflamado sobre os malefícios do composto químico enxofre (cito à Tabela Periódica, número 16) quando ligado a 2 átomos de oxigênio. Ou ainda, mesmo sem ser um adepto declarado dos Vinhos Naturais, culpe o famigerado “sulfito” por aquela dor de cabeça do dia seguinte... Não importa de qual lado da força estejam as suas convicções: onde há polêmica, faltam certezas. E como de absoluto e inegável só o conhecimento, peço licença para ponderarmos a respeito.
Vamos aos fatos?
O que é o dióxido de enxofre (aka SO2)?
O enxofre é um elemento químico encontrado nas rochas e em todos os lugares subterrâneos. É considerado um elemento fundamental da vida, já que está presente em todas as células de todos os organismos vivos. Se você está se perguntando como é o cheiro do enxofre, pense no odor ao redor de fontes termais e vulcões ou, mais comum em nossas vidas cotidianas, o cheiro de ovos cozidos ou couve-flor. Como o nome indica, o dióxido de enxofre é a forma oxidada do enxofre, onde 2 átomos de oxigênio estão ligados a 1 átomo de enxofre. Portanto, SO2 é o resultado da combustão de enxofre, assim como o CO2 é formado ao queimar carboidratos.
Porque usar Sulfitos?
Sulfitos são aditivos usados comumente na elaboração de vinhos e podem apresentar-se sob a forma de gás, líquido, pó ou pastilha. De acordo com a decisão de cada produtor, os sulfitos poderão ser usados desde a chegada das uvas à adega, nos recipientes de fermentação, durante as trasfegas e/ou durante o engarrafamento. Isso porque o dióxido de enxofre (SO2) tem duas propriedades principais que são interessantes na produção de vinho:
- SO2 é anti-oxidante: Significa que, se houver oxigênio ao seu redor, ele o capturará ou o ligará, impedindo a oxidação de outras moléculas, como aromas.
- SO2 é um anti-séptico: O efeito anti-séptico do SO2 ajuda a inibir o desenvolvimento de "maus germes" no vinho, como bactérias ou fungos acéticos que fariam o vinho cheirar e ter um gosto ruim, caso começassem a crescer nele. O destino natural do suco de uva é tornar-se vinho e depois vinagre. O dióxido de enxofre permite que os produtores de vinho parem esse processo natural com o status de 'vinho', impedindo que ele vá mais longe na linha de podridão.
Quanto de dióxido de enxofre no vinho?
A quantidade de SO2 que pode ser adicionada a um vinho é estritamente regulamentada e controlada em todo o mundo. Qualquer vinho que contenha mais de 10 partes por milhão (ppm) de dióxido de enxofre deve conter a famosa menção 'contém sulfitos' em algum lugar do rótulo.
Como exemplo, de quanto SO2 é permitido no vinho, um dos regulamentos mais estritos - o europeu (Reg. CE no 606/2009) estabelece os seguintes limites:
- Tinto seco: 150 mg / L (150 ppm)
- Branco seco e Rosé: 200 mg / L (200 ppm)
- Tinto doce: (mais de 5 g / L de açúcares): 200 mg / L (200 ppm)
- Branco e Rosé doce: (mais de 5 g / L de açúcares): 250 mg / L (250 ppm)
- Alguns vinhos especiais, como aqueles elaborados com uvas afetadas pela podridão nobre (Botrytis cinerea) por exemplo, Sauternes: 300 mg / L (300ppm)
A menor quantidade de SO2 nos vinhos tintos é atribuída ao fato de eles já conterem muito mais antioxidantes e anti-sépticos naturais: os taninos e outros fenólicos. Por outro lado, mais dióxido de enxofre é adicionado aos vinhos mais doces para protegêlos melhor contra bactérias e fungos que, como nós, adoram açúcar!
E os Vinhos Naturais?
Prepare-se para a informação: Não existe um vinho 100% livre de sulfito! Os sulfitos são criados naturalmente como subproduto da fermentação alcoólica, a fermentação que transforma açúcar em álcool, administrada por leveduras, um processo essencial para a produção de vinho. Portanto, sempre haverá vestígios de sulfitos em um vinho, mesmo que nenhum tenha sido adicionado. Cervejas e queijos também contêm alguns sulfitos naturais. Assim como os frutos secos; esses aliás, com quantidades muito superiores às encontradas no vinho.
Dor de Cabeça: ter ou não ter, eis a questão!
Pesquisas médicas ainda não estabeleceram definitivamente a relação entre sulfitos e dores de cabeça. E enquanto o diagnóstico não fecha, vale lembrar que existem outros compostos no vinho, como histaminas (envolvidas em alergias), taninos e, é claro, o próprio álcool, que provavelmente estão relacionados ao efeito infeliz da dor de cabeça da nossa bebida favorita. No entanto, cerca de 5 a 10% das pessoas com asma têm uma sensibilidade severa aos sulfitos e desenvolvem alergias fortes. Embora isso afete menos de 1% da população, essa é a principal razão pela qual as autoridades exigem a rotulagem de vinhos com sulfitos acima de 10 partes por milhão (ppm). Vale lembrar que, no caso de gestantes, o que causa danos ao desenvolvimento do embrião é o álcool, não os sulfitos.
Vamos concluir, à luz da imparcialidade?
Todo o vinho tem sulfitos, sejam eles provenientes da fermentação ou adicionados. Quando adicionados, não há legislação que obrigue expor a quantidade utilizada no rótulo. Os Vinhos Naturais são prejudicados pelo termo de rotulagem padrão em vigor, dando a falsa impressão de que têm a mesma quantidade de SO2 geralmente encontrada nos vinhos “convencionais”. Uma solução talvez fosse conceder-lhes a insígnia “vinho sem adição de sulfitos”. Utilizar sulfitos na produção de vinho é uma opção; higiene extrema e cuidados meticulosos desde a uva até a garrafa, mais do que uma obrigação. Os inocentes frutos secos possuem algo entre 500 e 3000 ppm de SO2 (e desconheço qualquer debate a respeito…). Apesar de sua utilidade na redução da oxidação e na eliminação de bactérias nocivas, alguns acreditam que o SO2 também silencia as delicadas nuances que expressam o caráter da safra ou do vinhedo. Em contrapartida, vinhos feitos sem SO2 podem ter aromas levemente selvagens e "descolados", que provocam a mesma reação de amor / ódio que um queijo maduro / fedido. 'Mousiness' é outra questão - a maldição do enólogo “no-SO2”, essa característica de acabamento selvagem é indetectável no nariz, mas paira no palato e pode facilmente tornar um vinho imbebível.
O que eu acho??
Bem, como diria Louis Pasteur, “Existe mais filosofia numa garrafa de vinho do que em todos os livros do mundo.” Então, sigo aprendendo... Talvez por isso sejamos tão apaixonados!
Santé!!